artigo da semana

-O ESPIRITISMO NOS LIVROS SAGRADOS - I PRELIMINARES-

Por José Amigó e Pellícer

Uma colaboração de Estênio Negreiros (estenio.gomesnegreiros57@gmail.com)

 

 

Que livros são esses a que chamam sagrados e que servem de manancial e ponto de partida às crenças e ao culto?

 

Eis aí uma pergunta de fácil resposta à primeira vista, porém que, não obstante, se presta a sérias considerações filosóficas. Não penetraremos nesse terreno, porque no-lo veda a índole do livro que escrevemos; cingir-nos-emos, apenas, a algumas indicações, que são, a nosso ver, as mais precisas para a inteligência dos textos bíblicos que nos propomos comentar nesta terceira parte.

 

Reconhecido que o progresso das sociedades humanas precisava, para realizar-se, do concurso da Providência, causa única da substância inteligente e, portanto, do movimento intelectual, tinham de vir, e vieram, em todos os tempos e para todos os povos, inspirações superiores que, dando satisfação a uma nova necessidade e despertando um novo desejo, levassem ao coração do homem a sanção da virtude, o consolo e a esperança. A Humanidade, como a Terra, é por si mesma fria e improdutiva, e continuaria perpetuamente na sua esterilidade, se não fecundassem no seu seio os temperados beijos do sol e as chuvas benéficas.

 

Quando essas inspirações, esses orvalhos consoladores do espírito, foram necessárias ao progresso particular do indivíduo, só o indivíduo sentiu a sua influência; mas, quando, não o indivíduo e sim uma parte considerável da grande família humana, precisou do impulso providencial para triunfar dos obstáculos atravessados no caminho do progresso geral, então a influência das inspirações invadiu tudo, soando em todos os ouvidos e brilhando com resplendor aos olhos atônitos dos povos. Em cada um desses momentos históricos, um novo marco assinala o caminho percorrido pelo homem.

 

Tal é a origem dos livros chamados sagrados, que cada religião guarda na arca da sua fé, como o mais expressivo sinal da sua aliança com o Supremo Autor do Universo. Livros divinamente inspirados, códigos de regeneração, monumentos solenes de sabedoria, testemunhos irrecusáveis da misericórdia do Altíssimo! Escritos com a intervenção superior, resplandece neles uma luz divina, que os eleva muito acima das concepções dos homens.

 

Os livros sagrados são o grande depósito dos tesouros de fé recolhidos pelos povos na sucessão dos séculos; são a história do movimento moral da Humanidade e do desenvolvimento do sentimento religioso; são a misteriosa cadeia da revelação, cujos degraus ligam a Terra ao céu.

 

É preciso, porém, considerar, para a devida inteligência das sagradas escrituras, que a revelação, como a moral, como a fé, como o sentimento religioso, como as faculdades humanas, é progressiva, e vem satisfazer, em cada uma de suas fases, a uma necessidade espiritual. Por essa razão, ao estudar seu curso, convém também fixar a atenção nas necessidades que elas satisfazem, pois essas necessidades satisfeitas são quase sempre a chave para a explicação e a inteligência dos profundos conceitos e da sentenciosa linguagem da revelação escrita.

 

Convém, ainda, distinguir na revelação escrita o que é essencial e o que é acidental, a alma e o corpo, o fundo e a forma, o espírito e a letra; o primeiro é o resultado da influência superior, é como se disséssemos: o corpo celestial; o segundo é o traço indelével da intervenção humana.

 

Figuremos um raio de puríssima luz envolto em escuros e densos vapores, e teremos uma imagem da revelação; o raio de luz é a inspiração divina, formosa, pura e imaculada; a túnica de vapores é a palavra e as interpretações dos homens, nunca bastante desmaterializadas para alcançarem o nível da divina inspiração. Eis aí por que no estudo das sagradas escrituras devemos preferir antes o espírito que a letra, antes o pensamento que as formas; o pensamento é o essencial da revelação. A letra mata e o espírito vivifica. Por ter esquecido esta verdade, o cristianismo romano tornou-se uma religião escrava de exterioridades e formas, alheia ao pensamento capital, à ideia fundamental do verdadeiro Cristianismo.

 

A revelação existiu desde o princípio da Humanidade; a sua luz é para a alma o que a luz sideral é para o corpo, é a vida, o movimento, a salvação e a felicidade. A primeira afirmação da consciência foi à primeira palavra da revelação, chamada lei natural em relação às primeiras épocas do sentimento e do desenvolvimento do raciocínio. Mas, a lei natural, simplíssima e incompleta em seu nascimento, multiplicou os seus preceitos à medida que se desenvolviam a consciência e a razão humanas, e, pouco a pouco, de progresso em progresso, chegou o dia em que os homens sentiram a necessidade de ter à vista o código moral, cujos múltiplos preceitos esqueciam com facilidade, apegados em demasia, como se achavam, aos prazeres da carne. Desde então, começa a existência da revelação escrita e a formação dos primeiros livros destinados a passar, com o caráter de sagrados, às épocas vindouras. Esse caráter não os livrou, contudo, de serem depois substituídos, reformados ou aumentados com a adjunção de outros que melhor correspondessem às novas necessidades morais dos séculos, ficando os livros primitivos cancelados em tudo o que não estivesse conforme com as prescrições e com as doutrinas das últimas revelações. Monumentos insignes das civilizações que passaram, destroços venerandos e eternos do templo primitivo da fé, cada uma das suas pedras derrocadas, cada uma das suas paredes fendidas e ameaçando ruína, é uma página sagrada da grande história da civilização religiosa dos povos. A estas sagradas e imperecíveis relíquias pertencem os livros da revelação anterior a Jesus Cristo que, compilados, formam o Antigo Testamento, essencialmente modificados nos livros da revelação cristã.

 

Que quer dizer isso? Será porventura que a origem dos livros sagrados é puramente humana e imerecida a autoridade que o mundo lhes atribui? Não, certamente, já o dissemos; a sua origem superior e providencial ressalta, se é possível, com mais força da própria mutabilidade progressiva das suas doutrinas, sempre suficientes e acomodadas às necessidades morais das gerações. O que isso quer dizer é que o homem não possui, nem possuirá a verdade absoluta; ele é um ser progressivo e perfectível que sempre girará dentro da instabilidade. O que isso quer dizer é que a revelação progride, e dos seus progressos nascem à transformação do sentimento religioso e as modificações da fé. Fundamentalmente, a revelação é sempre a mesma, porque é imutável a lei de que procede; porém brilha cada dia com um novo esplendor e em horizontes mais dilatados, de conformidade com o progresso espiritual das sociedades humanas.

 

Consideremos a Terra limitada à montanha elevadíssima, coberta de negras nuvens, quase impenetráveis à luz nas camadas inferiores, e a Humanidade, em sua infância, morando na tenebrosa fralda da montanha, cujo cimo se perde além das nuvens, além da atmosfera, além das zonas etéreas, banhadas pelos esplêndidos raios de um sol regenerador. A família humana agita-se, primeiro, nas trevas; cai e levanta-se; torna a cair e a levantar-se, antes de subir alguns passos pela encosta da montanha e antes de vislumbrar os crepúsculos da luz; mas, já os vislumbrou, e eles são o guia dos seus passos, a alegria dos seus olhos e a esperança do seu coração.

 

Sobe e sobe pela montanha, adiantando-se aqui, retrocedendo ali; ora tomando alento para adiantar-se mais, e ora fixando com horror as suas vistas nos perigos passados. As camadas atmosféricas vão sendo cada vez mais rarefeitas e a luz mais intensa, à medida que se faz a ascensão; a luz do Sol, porém, a Humanidade só a verá no seu esplendor, quando terminar a sua peregrinação e chegar ao ditoso cimo, donde, olhando para baixo, vê um oceano de trevas, e donde, erguendo os olhos, descobre os intérminos horizontes do infinito.

 

Eis aí o homem; eis aí a revelação! Esta é o puríssimo Sol da verdade; mas o homem abismado na ignorância, nas misérias, nas paixões, nas debilidades e nas torpezas, só pode ver a luz sucessiva e gradualmente, à medida que se emancipa das impurezas da matéria e se eleva pelas difíceis veredas do progresso. Feliz será ele, se, em cada jornada, feliz a Humanidade, se, em cada uma de suas fases, lograr transpor alguma dessas sombrias zonas que lhe impedem a visão beatífica do sol do amor.

 

Fixemos agora as nossas vistas nos monumentos antigos e modernos da revelação, nos livros sagrados do Cristianismo, no Antigo e Novo Testamento, dos quais é continuação a revelação que se obtém em nossos dias com as comunicações espíritas. Moisés falou a linguagem do seu tempo; os profetas falaram para os homens com os quais conviviam; Jesus Cristo deixou ainda por dizer muitas coisas, porque o mundo não podia aceitá-las; os Espíritos espalham hoje com maior clareza as verdades evangélicas, e novos clarões iluminarão amanhã os passos da Humanidade na sua peregrinação sempre ascendente, em busca da perfeição e da felicidade, pelos merecimentos do dever. O estudo das sagradas letras é na atualidade tão necessário como o dos comentários e interpretações com que a igreja oficial pretendeu explicá-las, pois, se em épocas passadas puderam dar alguma luz, no presente elas lutam com o senso comum, com a Ciência e com o sentimento verdadeiramente religioso.

 

E indispensável restaurar o gênio do Cristianismo, cuja decadência é assaz notória, para não se temer a sua própria ruína. Cristianismo fictício, moral acomodatícia e religião toda de aparências ocupam o lugar das doutrinas do Cristo, da moral evangélica e da religião do coração.

 

Nela, o amor é egoísmo, a adoração é hipocrisia, a humildade é fausto e orgulho; o templo é um mercado onde se cotizam e onde se trocam por dinheiro as graças espirituais, nem mais nem menos do que se usa com as mercadorias do comércio temporal. Há monopolizadores da luz e dos bens celestiais, como os há de cereais, de vinhos e de produtos da indústria.

 

Até se pretende o monopólio da oração, e estamos ameaçados de não poder elevar a Deus as nossas preces, senão por meio de um procurador, previamente pago dos seus direitos, em papel timbrado com o competente selo. Tão notórios e escandalosos abusos serão autorizados pelo Evangelho e pelos Apóstolos?

 

Por certo que não. Volvam todos os cristãos os olhos para esses livros e ficar-se-á conhecendo o verdadeiro Cristianismo. Se queremos a salvação, busquemo-la na fonte de vida. Leiamos essas páginas inspiradas, até hoje não abandonadas — e veremos que os erros, os abusos, as mistificações, os absurdos, as falsidades e a fraude não são da revelação, mas dos homens que os acomodaram às suas vistas e ao seu egoísmo. Veremos o Cristianismo em sua primitiva pureza — e não acharemos ponto de semelhança entre o cristão segundo o modelo romano e o discípulo de Jesus, entre os doutores da igreja oficial e os Apóstolos.

 

Lede, cristãos, lede com os vossos próprios olhos. Acaso devemos ignorar sempre as verdades reveladas?

 

Veremos ainda, se abrirmos as Sagradas Escrituras, que estão nelas sancionadas as doutrinas do Espiritismo, tão combatidas e condenadas pela ignorância e pela malícia dos modernos escribas e fariseus. Como não ser assim, se o Espiritismo é exatamente o Cristianismo original, puro, concreto, sem acréscimos nem mandamentos humanos, sem inovações contrárias às doutrinas do Cristo? Sim, leitores cristãos e irmãos nossos; se vos escandalizam as afirmações espíritas, escandalizais-vos de Jesus; se perseguis com os vossos anátemas e sarcasmos os discípulos do a que chamais nova seita, anatematizais e perseguis os discípulos de Jesus. A loucura espírita é a mesma que esteve na mente do Cristo durante a sua prédica; a chama do Espiritismo é a mesma que inflamou o amoroso coração do primeiro dos mártires; ideia espírita é a mesma que foi propagada pelo Filho do homem, até selá-la com o sacrifício da sua preciosa vida. Por isso, nós, os espíritas, seguindo as pegadas do Mestre, não vacilamos nem tememos; arrostaremos o orgulho e o desprezo dos homens, com a segurança de que o tempo nos dará razão, e de que acabarão por abraçar a nossa loucura cristã os mesmos que agora com mais empenho a combatem e amaldiçoam.

 

Se fosse possível, trasladaríamos para aqui integralmente o Antigo e o Novo Testamento, a fim de que não restasse dúvida alguma acerca da perfeita conformidade do Espiritismo com a revelação das Escrituras. Como, porém, isso tornaria interminável a nossa tarefa e far-nos-ia sair dos limites convenientes ao nosso propósito, que é escrever um livro que possa ser manuseado com facilidade, cingir-nos-emos nesta terceira parte a recompilar e a comentar os textos bíblicos relativos à pluralidade dos mundos e das existências, à reencarnação dos Espíritos, ao inferno, ao diabo e à comunicação espiritual, pois são os pontos doutrinários fundamentais, que separam o Cristianismo Romano do Cristianismo Espírita, devendo advertir que as citações que fizemos poderão ser verificadas pelos leitores na Sagrada Bíblia.

 

Do livro Roma e o Evangelho, distribuição do Portal Luz Espírita (http://www.luzespirita.org.br)